O Maio Amarelo é um movimento internacional de conscientização para a segurança no trânsito, presente em mais de 20 países. A campanha une esforços do poder público e da sociedade civil para salvar vidas. Em Curitiba, reconhecida por seu sistema inovador de transporte coletivo com canaletas exclusivas, um dos temas em destaque é o combate à prática conhecida como “rabeira” – quando ciclistas se penduram na traseira de ônibus em movimento.
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O que muita gente não sabe é que essa prática perigosa tem raízes históricas. Desde o fim do século 19, quando bondes puxados por mulas circulavam pela cidade, já se alertava sobre a imprudência dos chamados “pingentes” ou “pula-bondes” – passageiros que se arriscavam pendurados nos estribos ou para-choques traseiros dos veículos.
Nesta reportagem especial da Câmara Municipal de Curitiba (CMC), relembramos cinco fatos históricos do transporte curitibano que ajudam a entender a evolução do modal e a refletir sobre o trânsito de ontem e os desafios de hoje, em busca de um trânsito mais seguro.
Até a chegada dos bondes de mulas, o transporte era feito por carroças. Com um atraso de 28 anos em relação ao Rio de Janeiro, a capital do Império, os bondes sobre trilhos, puxados por mulas, começaram a circular em Curitiba em novembro de 1887. A cidade ficou em festa para a viagem inaugural, entre a estação central da empresa Ferro Carril Curitibana (hoje, o anexo 3 da Câmara Municipal) e o bairro Batel.
Nos bondes por tração animal, estavam políticos, industriais e jornalistas, além de “distintas senhoras de nossa sociedade”, conforme o relato da “Gazeta Paranaense”. Durante a passagem dos bondes, a população lançava flores. “A recepção que tiveram os bondes no Batel foi gloriosa, soberba, digna, […] flores, bandeiras, arcos, música, foguetes e aclamações delirantes formavam um esplêndido concerto de alegrias”, registrou o extinto jornal.
Os carroceiros de Curitiba, por outro lado, não gostaram da novidade. Preocupados com a concorrência dos bondes de mulas, eles tentaram, desde o primeiro dia, sabotar o novo modal de transporte. Segundo reportagens daquele período, os carroceiros costumavam agir “na calada da noite”, bloqueando os trilhos com paus e pedras. A polícia precisou agir para evitar acidentes como o descarrilamento dos bondes.
A chegada dos bondes de mulas foi motivo de festa em Curitiba, mas logo os jornais da cidade passaram a registrar acidentes. O primeiro deles foi noticiado em dezembro de 1887. Segundo o jornal “Gazeta Paranaense”, o bonde nº 3 seguia “com tanta velocidade que não obedeceu à curva” e perdeu o controle, na descida da Rua da Assembleia (atual Alameda Doutor Muricy). O veículo então descarrilou e tombou na entrada da Rua da Imperatriz (atual rua XV de Novembro).
O jornal atribuiu o acidente ao “pouco cuidado” do cocheiro – como eram chamados os motoristas dos veículos de tração animal até a chegada do bonde elétrico, em 1913, quando a função passou a ser de motorneiro. Já os cobradores da passagem dos bondes eram conhecidos como condutores.
Curitiba conta, hoje, com uma frota de mais de 1,8 milhão de veículos, sendo 1,1 milhão de automóveis. Já o cenário nas ruas da cidade, no começo do século passado, era bem diferente. O primeiro carro da capital paranaense, da fabricante francesa Peugeot, foi importado de Paris por um jovem industrial ervateiro curitibano, Francisco Fido Fontana.
O veículo chegou ao Porto de Paranaguá no dia 20 de março de 1903. “É o primeiro importado para o nosso estado”, registrou o jornal “Diário do Paraná”. Apenas dois meses depois, o jornal “A República” noticiou que o carro que pertencia a Fido circulava “a toda velocidade pela rua Campos Gerais” e que duas crianças, “filhas do sr. Braga, que brincavam na porta de sua residência”, quase foram atropeladas. “A custo escaparam, sendo, porém, morto um cachorrinho pertencente àquele senhor”, alertou a publicação.
“Lamentável ocorrência num automóvel”, escreveu, três meses depois do quase atropelamento, o “Diário da Tarde”. O primeiro acidente de carro com pessoas feridas, na cidade de Curitiba, aconteceu num sábado à tarde, dia 15 de agosto de 1903, na região onde fica, hoje, o bairro de Santa Felicidade. “Em uma rampa bastante íngreme, demandando [dirigindo-se para] a chácara Schemelfeng, o break [freio] deixou de funcionar, não sendo possível sofrear [parar] o automóvel, que em carreira vertiginosa descia a ladeira”, citou o jornal.
Muito antes das canaletas e dos biarticulados, os curitibanos já arriscavam a vida pendurados nos bondes. Conhecidos como “pingentes” ou “pula‑bondes”, eles viajavam nos estribos (degraus) e para‑choques traseiros para evitar o pagamento da passagem (chamada de “coupon”) ou simplesmente por “aventura”. Apesar de proibida, a prática era comum e resultava em graves acidentes, noticiados por jornais da época.
Devido aos “pingentes”, os bondes chegaram a ser apelidados de “balangandãs” (espécie de joia afro-brasileira). As práticas de “morcegar o bonde” ou “tomá-lo de assalto”, isto é, descer ou subir no vagão em movimento, também estavam entre os principais fatores dos acidentes registrados mais de 100 anos atrás.
Em outubro de 1905, por exemplo, o jornal “A Republica” noticiou o acidente com o condutor (cobrador) da linha Seminário. De acordo com a matéria, o homem estava no estribo e “foi de encontro com o poste de ferro, ficando preso entre este e o bonde, caindo depois no açude marginal à estrada, de onde o levantaram sem sentidos, com o rosto horrivelmente ferido e o corpo cheio de contusões”.
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“Homem esmagado” é o título de outra notícia do “A Republica”, em janeiro de 1915, sobre a morte de um passageiro que caiu do bonde, na rua Comendador Araújo. Em outro exemplo de imprudência, antes mesmo da era dos ônibus, o jornal “Correio do Paraná” informou, em julho de 1938, o grave acidente com um jovem de 15 anos que se arriscava como “pingente”, caiu e bateu a cabeça.
No começo do século 20, o crescimento de Curitiba foi impulsionado pelo ciclo da erva-mate e fez com que os bondes com tração animal se tornassem obsoletos. Os registros mostram que, entre 1903 e 1913, o número de passageiros aumentou 179%, saltando de 680 mil para 1,9 milhão por ano. A modernização do sistema era discutida pela Câmara Municipal desde 1907, mas levou alguns anos para se tornar realidade.
Os primeiros bondes elétricos começaram a ser testados em dezembro de 1912 e entraram em operação a partir de 1913. Entretanto, como a demanda continuou crescendo, em 1928 surgiram os primeiros ônibus (ou “omnibus”, na grafia da época). Em 1952, os bondes elétricos, já escassos, foram definitivamente desativados.
Hoje, parte desse legado histórico está preservado no anexo 3 da Câmara Municipal de Curitiba, onde podem ser vistos trilhos originais e a estrutura metálica do telhado da garagem histórica de bondes – testemunho de uma época que pavimentou o caminho para o sistema BRT que conhecemos hoje.